O Carnaval ensejou uma oportunidade especial de vislumbrar os riscos das trevas do totalitarismo, que se abatem sobre a sociedade quando o Estado envereda pelo caminho da apreciação moral das regras políticas e jurídicas.

Refiro-me a dois episódios da violação da liberdade de expressão: quando a Justiça proibiu no Rio de Janeiro a Escola de Samba Unidos do Viradouro de desfilar com um carro alegórico sobre o holocausto da II Guerra Mundial e a Prefeitura de Recife foi acusada de haver desrespeitado a lei do aborto, ao distribuir a chamada “pílula do dia seguinte” durante o tríduo momesco.

Ao Estado não é dado o poder legítimo da apreciação moral na aplicação da política e do direito. Foi a moral nazista que viabilizou a barbárie na aplicação das normas e regras políticas e jurídicas alemães.

A interpretação moral da legislação também permitiu o apartheid sul-africano e a discriminação racial nos Estados Unidos.

A fundamentação institucional-legal do nosso País não dava qualquer sustentação objetiva, seja à condenação da “pílula do dia seguinte” ou à proibição do carro alegórico da Viradouro.

Em ambos os episódios, a subjetividade essencialmente moral – talvez moralista– dos juízes condenou a pílula e proibiu o carro no desfile, em claro desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão num estado laico como o brasileiro.

Há que se fazer a distinção entre ordem institucional-legal (jurídica e política) e a ordem moral. Assim, nem a moral pode substituir a política e o jurídico, assim como a política e o jurídico não podem substituir a moral. Nem mesmo quando a moral é modernamente batizada de direitos humanos ou de humanitarismo, o que lhe reveste distorcidamente, ainda mais, de conotações políticas e jurídicas.

É a ordem jurídico-política, ou seja, a lei e o Estado, a organização institucional-legal, que asseguram aos indivíduos os seus direitos e os atribuem responsabilidades e obrigações.

É o legislador quem nos diz se devemos ou temos o direito de fazer a clonagem reprodutiva, as manipulações genéticas, o uso das células-tronco e, no caso em tela, distribuir a “pílula do dia seguinte” e garantir a liberdade de expressão num carro alegórico de escola de samba.

É o legislador que fixa essas prerrogativas, que dá concretude à vontade do povo soberano numa democracia, por meio da mediação da representação política no parlamento.

A ordem institucional é estruturada pela oposição entre o legal e o ilegal. Há o que a lei autoriza – legal – e o que a lei proíbe – ilegal.

Politicamente, há os que têm competência para fazer a lei; isto é, detêm a maioria da representação, e os que não têm essa competência, ou seja, a oposição. É assim a ordem democrática e republicana.

A um juiz não é dado o direito de sobrepor o seu foro íntimo, os seus gostos e preferências religiosas, as suas acepções morais como indivíduo à interpretação objetiva da lei produzida pelo coletivo da representação política reunida no parlamento, que consagra o modelo institucional-legal prevalecente na sociedade.

Se assim o fizer, mais do que a disfuncionalidade da politização do Poder Judiciário, ele estará suprimindo a laicidade do Estado brasileiro, contaminando com a subjetividade de suas opções morais o caráter da interpretação e aplicação objetiva da lei.

A moral é o conjunto de deveres, obrigações ou proibições que impomos a nós mesmos, independentemente de qualquer recompensa ou sanção esperada e até de qualquer esperança. É o conjunto do que vale ou se impõe, incondicionalmente, para uma consciência.

Ser moral é cuidar do seu dever. Ser moralista ou moralizador é querer cuidar do dever dos outros. A moral nunca é para o outro, para o vizinho, para o próximo. É para si. Portanto, a um juiz não é deferido o poder de impor a sua moral sobre quem quer que seja ao fazer a interpretação da legislação aplicada.

O elo mais fraco hoje na sociedade brasileira não é a crise dos valores morais produzida pela corrupção desenfreada, como muitos acreditam, mas a crise das instituições políticas que também se contaminam pela interpretação moralista dos agentes públicos, que se arvoram em aristocratas da virtude.

A nossa sociedade vai mal quando o moralismo que fundamenta as decisões judiciais desconhecem os limites interpostos a cada juiz pelas regras objetivas do estado democrático de direito. Este é o ovo da serpente do totalitarismo. Isto nos causa arrepio de medo, como tão propriamente propugnava o enredo carnavalesco violado pela decisão judicial pretensamente moralizadora.

Adm. Wagner Siqueira é presidente do Conselho Federal de Administração e conselheiro federal pelo Rio de Janeiro