A Educação na Sociedade de Mercado

A escola se submete,   cada vez mais,   a enormes pressões para que se conforme aos novos paradigmas da globalização e da lógica da sociedade de mercado.

A competição econômica mundial se torna o imperativo categórico a que todas as instituições educacionais devem se subordinar se quiserem sobreviver.

A escola – ao se moldar por este paradigma – reduz-se ao restrito papel de formação do “capital humano” necessário à eficiência das organizações, ao aumento dos padrões de desempenho e de produtividade.

Por sua vez, os alunos são crescentemente constrangidos a participar e a demandar essa metamorfose do papel social das escolas. Contribuem para abrir espaço à mercantilizaçao dos saberes e das aprendizagens, e à cristalização de iniqüidades formadas e graduadas como os novos bacharéis da sociedade do conhecimento.

Diante de tal contexto, os verdadeiros “mestres” pouco a pouco capitulam.

A escola vive uma crise crônica, em que os amplos debates no seio da sociedade, entre pais, alunos, educadores, políticos e a opinião pública em geral, praticamente têm por consenso a colocarem em estágio de “morte  a”. Ou pior: “a escola está morta”, apenas para me reportar ao clássico de Ivan Illich e Everett Reimer publicado aqui no Brasil nos idos de 1975 pela Francisco Alves Editora.

O discurso dominante, o senso comum sustenta que é inadiável uma profunda reforma educacional, que resgate o papel da escola para as reais necessidades dos tempos presentes.

Reforma educacional, eis aí a solução mágica, o “Abra-te Sésamo” para todas as dificuldades!

Mas reforma para edificar que tipo de escola? E uma escola destinada a que tipo de sociedade? Ora, uma nação que não tem projeto de país educa sem direção e sentido, não constrói a trajetória de sua existência.

Certamente, não pode ser uma escola voltada à formação de quadros para as organizações transformadas em verdadeiras tribos ou cults de auto-adoração e de auto-veneração, verdadeiras seitas de deificação do trabalho.

Certamente, também não pode ser uma escola que pretenda formar gerentes, gestores, empreendedores e líderes empresariais para o desempenho do papel de “educadores corporativos” de seus funcionários, agora chamados de colaboradores, inoculando-lhes a lógica, a doutrina e a ideologia das organizações empresariais modernas da sociedade de mercado.

A educação, mais do que nunca, fundamenta-se na racionalidade tecnológica e nas necessidades interpostas pelo o que deseja o mercado.

À semelhança dos operários do Século XIX, os profissionais de hoje, forjados nas ambiências universitárias sofisticadas, os que ainda conseguem emprego, são agora igualmente apêndices humanos dos aparatos tecnológicos, soi-disant máquinas modernas de produção.

 Devem ser também formados para garantir a eficiência e a produtividade do sistema produtivo.

 É todo cabedal conceptual, ideológico e operacional do taylorismo e do fordismo, agora de fraque e cartola, revisitado pela formação acadêmica como requisito mínimo para os empregos das empresas-cidadãs, sempre com seus programas de responsabilidade social, de desenvolvimento sustentável e de ética empresarial.

Dispensa-se a formação intelectual, crítica e cultural. Enfatiza-se apenas a que sustente ou estimule a racionalidade instrumental ou técnica do trabalho a ser executado.

É evidente que o domínio da tecnologia é imprescindível à felicidade e à liberdade humana. Mas aquele que desenvolve uma postura intelectual restrita à tecnologia é levado a identificar-se com os aparatos e as máquinas, a mitificá-los e a sacralizá-los, e, assim, a derivar satisfação psicológica apenas por fazer o trabalho bem feito, o que lhe é propiciado pela capacitação técnica pessoal e pelo instrumental tecnológico disponível.

A técnica é apenas extensão do braço humano e, por isso, fundamental. Mas não se constitui num fim em si mesmo. Ainda que também seja produto da inventividade humana, não expressa e não esgota todas as faculdades e qualidades inerentes ao homem.

A cultura se converte também em mercadoria. Deixa de ser inerente à formação, não se incorporando mais aos indivíduos como pessoas humanas únicas e singulares.

A cultura tecnicista instrumentaliza os indivíduos, e não mais os forma. Em verdade, os deforma.

A formação em sua integralidade e inteireza se dá a partir da incorporação da cultura pelos indivíduos. Não se pode conceber a pessoa dela dissociada.

Essa cultura tecnicista convertida em mercadoria só pode ser adquirida como valor de troca. E, assim, os indivíduos se formam para aumentar o seu valor no mercado, e não mais para a diferenciação, para a compreensão da sociedade em que vivem e para o compromisso com a sua transformação, com vistas a torná-la mais justa, equitativa e em plenitude de liberdade.

A obtenção da cultura como um fim em si mesmo, em contrapartida, não permite, por si só, que a pessoa seja capaz de compreender as circunstâncias em que se encontra. Igualmente, a cultura que transmite apenas o instrumental para a adaptação e a sobrevivência imediata também não possibilita que o indivíduo se torne capaz de compreender e de transformar as suas circunstâncias.

A educação transformada em mercadoria é claramente expressa quando se dá absoluta relevância aos índices nacionais de classificação das melhores escolas.

Sistemas como o ENADE e o ENEM, em que pese a sua legitimidade e contribuição na busca da melhoria da educação no País, não deixam de expressar de forma contundente este viés. Assim, diretores, professores e alunos se dedicam exaustivamente à competição por uma melhor classificação como prova de que oferecem ao mercado as melhores mercadorias educacionais – os alunos formados -, o que, por sua vez, vai lhes “levar ao paraíso” do emprego e da ocupação profissional.

Tendemos ainda a julgar que uma formação, mesmo que precária, é melhor do que nenhuma. Mas este é um equívoco: a falsa formação ou a formação precária nos leva a pensar que sabemos o que não sabemos, que somos capazes de fazer o que efetivamente não somos.

É preciso denunciar a falsa formação educacional que se pratica generalizadamente em nosso País, em especial as condições objetivas que a engendram; não insistir no equívoco de que para superá-la seja somente e tão-somente uma responsabilidade individual de cada um.

O Ocioso por Excesso de Capacidade

A economia mundial não se mostra capaz de absorver o crescente aumento do nível educacional da força de trabalho.

Os formandos e graduados dos centros acadêmicos tornam-se ociosos por excesso de capacidade. E as organizações aumentam ainda mais os requisitos educacionais para a ocupação dos postos de trabalho. As pessoas passam a aceitar trabalhos e empregos anteriormente ocupados por pessoas bem menos qualificadas.

E a escola reafirma assim ainda mais a sua diretriz de ensino: não mais se orienta pelo humanismo indispensável centrado no universalismo do livre pensar a atividade humana e na qualificação intelectual do aluno.

Perde-se o senso crítico da realidade no sentido de transformá-la para se ganhar competências e habilidades específicas de interesse do mundo do trabalho. Não mais forma quadros para uma elite pensante. O aluno não é mais o diamante bruto a ser lapidado como um intelectual. Aprendem-se as competências “do produzir e do fazer” e perde-se a capacidade de pensar autonomamente.

Nunca se falou tanto em criatividade e inovação, louva-se “o ócio criativo”, mas os contextos educacionais e de trabalho nunca os restringiram tanto.

O discurso das organizações empresariais e educacionais é o de que vivemos o apogeu do humanismo, mas certamente a realidade é bem distinta: o discurso superfi ta da humanização organizacional esconde o auge do desrespeito à centralidade do homem no mundo da educação e do trabalho. A sociedade de mercado priva o homem de sua essencialidade humana. Desumaniza-o!

A Principal Função da Escola

Após o foco da escola na formação do crente, após o foco da escola na formação do cidadão, e após o foco na formação do homem comprometido com o ideal humanístico, a industrialização e a mercantilização da existência humana redefinem o homem como um ser essencialmente econômico e um individuo essencialmente privado.

A principal função da escola passa a ser formar quadros para o crescimento econômico e o mercado.

É preciso continuar a formar quadros adestrados para o mercado: os exércitos de reserva de mão de obra – antes na Revolução Industrial pela capacitação dos trabalhadores manuais especializados, agora pelos profissionais de qualificação acadêmica. Antes, os operários manuais fabris. Agora, os operários acadêmicos do conhecimento.

O novo compromisso da escola: prestar serviço ao mundo econômico e atender à lógica do mercado. Formar cidadãos passa a ser um simples efeito colateral.

Aprender a aprender

A escola deixa de ser a fonte do saber e do conhecimento. Restringe a sua ação pedagógica a fazer o aluno aprender a aprender as competências necessitadas pelo mercado que lhe garanta hoje, e pode pretensamente lhe garantir amanhã, o tão desejado emprego. Ah, sim! Agora se fala na empregabilidade e no empreendedorismo, ou seja: Vire-se!

O importante é a capacidade de o profissional continuar a aprender por toda a sua existência o que seja útil ao mercado e, portanto, que lhe permita exercer atividades remuneradas.

Ora, na sociedade do conhecimento a obsolescência das competências e das habilidades é muito mais rápida. Mudam-se os processos de trabalho, e, em conseqüência, obsoletizam-se todos.

É preciso aprender a aprender novas competências, que logo vão ficar ossificadas, ultrapassadas, e que, por isso, vão exigir, por sua vez, a reciclagem permanente para a aquisição de novas competências “do fazer e do produzir”.

Eis aí a educação continuada e permanente de que tanto se fala hoje: não se destina a desenvolver cidadãos mais conscientes, cônscios de si mesmos, mas a capacitar, treinar e adestrar a mão-de-obra em competências necessárias ao desempenho de atividades remuneradas pelo mercado.

Este novo paradigma da pedagogização da existência responsabiliza o cidadão pelo dever de aprender. É o século da volta à escola para aprender a aprender a prestar melhores serviços ao empregador. Não é para aprender a explorar e a aprofundar a sua humanidade.

Aprender torna-se uma obrigação pessoal de sobrevivência no mercado de trabalho, muito mais do que uma resposta às necessidades de autonomia e de florescimento intelectual decorrente de um compromisso com o bem comum e da vontade coletiva da sociedade.

Educação: um bem individual e privado

A escola, na sociedade de mercado em que vivemos, concretiza um modelo escolar que considera a educação como um bem essencialmente privado, particular, individual, cujo valor é antes de tudo econômico, a serviço do mercado.

Não é mais a resultante de uma sociedade que tem como vontade política a garantia da educação cidadã de todos os seus membros.

São os indivíduos que devem capitalizar a educação em seu próprio beneficio, como um bem essencialmente particular e pessoal. Sobretudo, o custo da educação deve ser rentável, com retorno para as empresas que utilizam os quadros profissionais formados pelas escolas.

 Aluno: cidadão ou cliente?

Certamente é cliente de um mercado educacional destinado à formação e à produção do capital humano das empresas.

Hoje a nova escola está a serviço da economia na formação de quadros profissionais para o mercado, quando deveria ser uma escola destinada a atender às necessidades de desenvolvimento de uma sociedade mais justa e fraterna, mais cidadã, com níveis decrescentes de iniqüidades.

Universidades: a serviço dos interesses do mercado.

De forma geral, um novo campo de acumulação de capital se abre com a transformação das universidades em fábricas de produção do saber eficaz, ou seja, a serviço dos interesses comerciais do mercado.

Este é o destino da produção do conhecimento e do saber: ser modelado por um capitalismo universitário a serviço dos interesses comerciais e econômicos das empresas que, o mais das vezes, sustentam os aparatos acadêmicos.

O desenvolvimento científico, as pesquisas em particular, se submete cada vez mais às exigências da valorização do capital.

A subordinação do saber à economia e ao mercado se representa pela multiplicação dos laboratórios e centros de pesquisa privados, e pela estreita relação entre os interesses das empresas e os das universidades.

Essa integração de interesses, em vez de gerar prioritariamente ganhos para a sociedade, resulta em mais e maiores lucros e ganhos para as empresas e seus acionistas. Os interesses das indústrias e do mercado acabam por contaminar e dominar a produção do saber no desenvolvimento das pesquisas aplicadas. Elas dão o tom e ditam o ritmo, dizem o que fazer e o que não fazer, limitam a ciência, controlam o seu desenvolvimento.

As pesquisas acadêmicas deixam de ter o foco no interesse público, no interesse do cidadão, para se circunscrever aos interesses econômicos empresariais.

Ou seja: o interesse empresarial dá o tom do que se vai ou não pesquisar, e, portanto, do que vai se transformar em produtos ou serviços. Não é mais o interesse do bem comum.

A produção do conhecimento se transforma numa atividade mercantil específica, financiado pelo capital privado, estampando o seu logotipo, a sua marca e a sua propriedade industrial, em centros de pesquisa de alto prestígio dos centros acadêmicos, tanto de instituições de ensino e pesquisa públicas quanto particulares.

Hoje, em muitíssimos casos, já não mais se sabe distinguir o que são laboratórios acadêmicos e os que são empresariais.

São as sempre louvadas parcerias universidade/empresa do mundo da globalização: cada vez mais entram recursos públicos para os benefícios privados.

A característica dominante do capitalismo moderno é precisamente o fomento e o financiamento direto da pesquisa com base no interesse particularista da empresa privada.

O desenvolvimento cientifico é, cada vez mais, subjugado aos desígnios de vontade dos interesses privados empresariais.

E, assim, um novo ator entra em cena: o lobbismo acadêmico e o pesquisador como garoto propaganda das multinacionais e das grandes ONG’s, e, também, das fundações globais para as quais estão igualmente a serviço.

A universidade se presta agora a representar o papel de rede de proteção dos interesses econômicos das organizações empresariais. Aporta a sua autoridade científica e o seu logotipo às operações comerciais e ao lobbismo empresarial.

Os professores e pesquisadores, conscientes ou não, o mais das vezes “muito conscientes”, transformam-se em porta-vozes e garotos-propaganda dos interesses empresariais privados.

Se os centros de pesquisas não desempenharem esse papel, correm o risco de terem as suas pesquisas e atividades descontinuadas, sem financiamento. É o seqüestro do saber a serviço dos interesses exclusivistas do mercado!

A ciência passa a ter relações promíscuas com o mercado. Financiada e patrocinada cada vez mais se coloca a serviço do lucro. E , assim, o controle sobre a natureza que a tecnologia possibilita ao homem moderno é pago com a sua escravidão a ela.

A Época do Capital Humano

É uma ilusão pretender conferir ao conceito de capital humano uma acepção estritamente técnica.

O capital humano é contaminado pela ideologia do mercado, pelo interesse, pela ganância e pela voracidade econômica das empresas e de seus acionistas.

Essa doutrina dominante em educação encontra hoje o seu centro de gravidade nas teorias do capital humano.

Mobiliza-se o saber, cada vez mais diversificado e especializado, como fator de produção e como mercadoria.

O capital humano é, assim, o estoque dos conhecimentos que têm valor econômico. Incorporam-se às pessoas, como um bem privado individual. Atuam como fator de produção e mercadoria, à disposição para a venda ao mercado.

É a nova versão, agora no Século XXI, do conceito de mais valia de que nos falava Karl Ma  há quase dois séculos.

Conformação às regras de aprovação social.

O homem não age propriamente, mas se comporta. Ou seja: vivendo numa organização, o homem é condicionado a conformar-se com as regras de aprovação social.

No caso particular das organizações empresariais, os seus funcionários têm que se submeter às regras de conduta impostas pela aristocracia do capital, que detém o poder nas organizações.

A educação na sociedade do conhecimento não mais educa para desenvolver plenamente o potencial do individuo, mas para ensiná-lo a comportar-se em sociedade, a como sair-se bem no mundo do trabalho, a como atuar no universo das organizações.

Abandona o conteúdo intrínseco da formação do cidadão e do intelectual, para cuidar prioritariamente da forma, da formação da conduta humana, do desenvolvimento de atitudes como predisposição para se comportar e não necessariamente para agir.

Por isso, cada vez mais a seleção de quadros se dá pelo filtro do critério da atitude e menos pelo do conhecimento.

O grande desafio passa a ser identificar e ensinar quais são as atitudes adequadas para ingressar no mundo do trabalho?

E, assim a escola educa para a conformação.

Adm. Wagner Siqueira
Presidente
CRA-RJ Nº 01-02903-7