*Adm. Wagner Siqueira
Uma erupção vulcânica, um terremoto, um tufão ou um tsunami são desastres ambientais naturais. Nenhum desses eventos da natureza pode ser controlado ou evitado pelo homem. Rompimento de barragem é crime ambiental. É negligência. É desídia. É prevaricação. É incompetência. É ganância. É certeza de impunidade.
Mais ainda quando acobertado por atos governamentais como o Decreto Presidencial nº 8572, de 13 de novembro de 2015, em que se considera também como “natural o desastre decorrente do rompimento ou colapso de barragens que ocasione movimento de massa, com danos a unidades residenciais”, sob o pretexto de que isso facilitaria a liberação de verbas para auxílio às vítimas, eximindo ainda mais o causador do imediato aporte de recursos necessários ao abrigo, socorro e busca por desaparecidos.
Esse quadro de circunstâncias de conivências espúrias se agrava quando negociações com o Ministério Público (MP), através de Termos de Ajuste de Conduta (TACs), e também decisões da Justiça fazem tábula rasa das declarações ribombantes das autoridades públicas — federais, estaduais e municipais, Poder Judiciário e Legislativo — sempre proferidas em cima dos infaustos acontecimentos sobre a aplicação de pesadas multas, processos rigorosos, mudança de legislação, melhor gestão, bloqueio de recursos das empresas envolvidas etc.
Ao passar do tempo, os crimes ficam impunes e as pessoas se calam. Propagam a falsa ideia de que a regulação institucional-legal do mercado é o principal inimigo do ambiente de negócios. E aí se abandonam as lutas de levar às barras dos tribunais a busca pela reparação das vítimas dos males provocados pelas grandes corporações. Abandonam a estratégia de luta política pela via judicial na ilusão de promover a gestão responsável das organizações. Passam a acreditar na autorregulação do mercado num processo evolutivo e sereno e em bases voluntárias e consensuais.
Baixam as armas, reduzem a capacidade de luta e de reivindicação. Perdem o poder de denúncia. Tudo vira rotina, acomodam-se: “é assim mesmo”, “não tem jeito”, “este é o Brasil”. E desistem, até o próximo crime ambiental que, de novo, escandaliza e revolta a todos. E a mesma narrativa se repete absurdamente.
A cobiça das organizações voltadas para os interesses exclusivistas de seus acionistas é uma das facetas mais cruéis da globalização da economia.
A legislação ambiental brasileira consegue realizar a proeza de, simultaneamente, não proteger de fato o meio ambiente e de garantir a sustentabilidade por focar uma rigidez burocrática insana ao tempo em que dificulta o ambiente de negócios no país. É o paroxismo de uma legislação que não funciona, que engessa a atividade econômica e que propicia a impunidade reiterada dos crimes ambientais.
Mais do que a necessidade de imposição de políticas públicas ambientais mais severas, é preciso cumpri-las! Os dois lados da moeda ambiental precisam ser atendidos simultaneamente: primeiro, proteger o meio ambiente das incursões predatórias; segundo, impulsionar ainda mais o ambiente de negócios e compatibilizar com racionalidade gerencial o que ameaça paralisar o mundo corporativo. A má adequação de ambos redunda nos crimes e tragédias ambientais e na paralisia econômica.
Será que realmente a Vale e outras empresas que lidam com produções tão sujeitas a danos ambientais e humanos se empenham efetivamente em melhores processos de gestão de risco? Duvido muito. Quem aposta que outras barragens, viadutos, pontes, encostas e passarelas não deixarão mais vítimas no Brasil ainda este ano?
A Vale contratou consultorias para avaliar as barragens depois do desastre de Mariana? Parece que falharam feio! É claro que a Vale deveria ter se beneficiado desses estudos de situação de cada barragem com vistas ao acompanhamento e monitoramento com o desenvolvimento de um programa próprio de prevenção de acidentes. Certamente falhou feio, pois nada fez! Por que não iniciou um processo de desassoreamento das barragens, já que o minério fino tem atualmente algum valor econômico? Por que a Vale não cuida de minerar essas barragens para uso econômico da areia e argila? Por que a Vale não faz monitoramento permanente das barragens, principalmente nas paredes principais, já que os rompimentos em geral começam com trincas nessas paredes. Não ocorrem de repente, mostram as suas degradações paulatinamente, portanto, avisam bem antes a iminência do desastre.
É evidente que a Vale e quase todas as empresas de mineração nos últimos 20 anos optaram pela redução de custos sem que para tal se fizesse estudo do core business da empresa.
A área de RH da Vale não minera minério de ferro, mas gente. Um bom RH teria que conhecer o business do minério de ferro para que pudesse realizar recrutamento e seleção de quadros não só baseado em valor salarial e currículo. Ao contrário, a Vale opta por mandar embora seus quadros qualificados e experientes, substituindo por gente de remuneração bem abaixo e com pouco conhecimento do negócio. A empresa perde know how e expertise a olhos vistos na essência de seu negócio. Ocupam os cargos nas atividades de campo com gente de sangue novo, animados, mas com pouca experiência. Pior ainda: contratam cada vez mais terceirizados com muito pouca vivência na atividade.
É evidente que a Vale foca por demais na governança e dá pouco valor à gestão da engenharia e dos seus quadros técnicos que atuam no campo.
Um dos exemplos mais gritantes dessa má gestão técnica da Vale é que a barragem de rejeitos acidentada foi construída há mais de 20 anos para proceder a uma reserva equivalente a cerca de 10 milhões de metros cúbicos. Sabe-se também, após estudos técnicos controversos, que foi autorizado o seu alteamento para armazenar mais 7 milhões de metros cúbicos. Pior: todo esse processo foi burocraticamente aprovado pelos órgãos competentes da empresa e governamentais.
Permanecem dúvidas quanto à operação: o alteamento foi feito adequadamente? Parece que não; será que o processo de enchimento não se iniciou antes do alteamento? Parece que sim; foram instalados equipamentos adequados de verificação do barramento?
Infelizmente, empresas de renome nacional e internacional, como a Vale, o mais das vezes, não contratam empresas e profissionais de renomada experiência, que se utilizam de indicadores de segurança compatíveis. Ao tentar economizar nesse item, buscam tecnologias e até mesmo processos executivos pouco seguros. Ademais, usualmente utilizam materiais e processo construtivos que podem incorrer em desvios de qualidade no produto construído.
Reiteradamente, também se valem de fiscalização não eficiente durante a construção. Em geral, contratam para baixar custos empresas sem qualquer experiência no setor. Algumas empresas estrangeiras não têm conhecimento das características brasileiras, vendem o nome, subcontratam empresas inexperientes e a fiscalização das obras deixa a desejar.
Às vezes, corrobora para esses deslizes um regime de contratação em que depois de concluído o empreendimento os contratados se eximem de quaisquer responsabilidades.
Finalmente, os agentes governamentais de controle se posicionam normalmente de forma burocrática e cartorial para projetos ambientais, deixando em segundo plano a monitoria e fiscalização.
Não se quer interromper as economias dos municípios e dos estados nem prejudicar os empregos nas áreas regionais operacionais, mas é preciso que as atividades econômicas sejam empreendidas com segurança.
Garantir uma resposta efetiva, principalmente à população pobre e desvalida afetada pelo evento, é uma prerrogativa inalienável de tutela da vida humana.
*Adm. Wagner Siqueira é conselheiro federal pelo Rio de Janeiro.