Os escândalos de todos os dias,   amplamente trombeteados pela imprensa em todo o mundo,   têm gravitado em torno de duas questões centrais,

Vivemos uma crise total dos valores morais no mundo das organizações em geral e uma lacuna crescente de referências e de modelos a serem seguidos nas suas direções.

Essa falência moral e ética está a exigir um gigantesco esforço de regeneração que somente será viável se as instituições públicas e empresariais contarem não apenas com bons gerentes e executivos, mas com líderes dispostos a assumirem os destinos da sociedade.

Essas duas questões, ou seja, a degradação das organizações públicas e particulares e a escassez de lideranças são confluentes, sinérgicas, fecundam-se reciprocamente, uma alimenta a outra. A degenerescência de costumes de indivíduos e de instituições cada vez mais se cristaliza. Se houvesse uma lei de determinismo na história, talvez a única a subsistir fosse a decadência e a degeneração.

É preciso o levantar de trincheiras concretas em defesa da regeneração das atitudes, dos comportamentos e das ações de governos e de empresas, de ONGs e de Oscips, de instituições pias, de benemerência e religiosas, enfim, de todas as organizações, e, simultaneamente, destacar e exaltar as referências de lideranças autênticas e genuínas para a construção de um novo tempo, que nos faça sair da senda da desgraça a que hoje nos submetemos.

Os especialistas em desenvolvimento de pessoas têm-se preocupado tanto em capacitar gerentes e executivos eficazes que negligenciam, ou até mesmo esquecem-se, da formação de lideranças.

Nunca se falou tanto em líderes, no papel do líder, na importância da liderança. Há uma pletórica profusão de livros sobre liderança, com adjetivação de distintos tipos de líderes. Mas nunca também se formou tantos gerentes e executivos para a conformação e a rotina, para fazer o que já está no gibi, nos manuais de processos de trabalho, para a repetição monocórdia do que já existe e do como é feito.

Nunca se falou tanto em empreendedorismo e em atitude empreendedora, mas cada vez mais os ambientes organizacionais são infensos à voz e à vez, à participação e à contribuição, ao pensamento autônomo, à liberdade de inovar e de ousar.

Os programas de desenvolvimento gerencial raramente produzem profissionais que aprendem a mudar a direção, a natureza, o caráter ou a cultura, a missão das organizações. Os nossos gerentes são incapazes de perceber além do trivial e do imediato, do dia a dia, do feijão com arroz. Algumas vezes eles podem até mudar, mas não inovar. Aprendem a aperfeiçoar o passado, mas não a modelar o futuro. Aprendem, o mais das vezes, a dar sangue a algo que simplesmente deveria morrer, a institucionalizar o erro, a dar ainda maior eficiência e competência ao que não mais deveria existir porque está obsoleto e anacrônico.

Os verdadeiros líderes raramente sobrevivem nas organizações castradoras da atual sociedade de mercado. Por isso, nossas organizações são repletas de gerentes e de executivos, mas vazias de líderes. Por isso, nossas organizações sucumbem dóceis ao despotismo de qualquer Zé da Silva ousado e audaz que circunstancialmente empolgue o poder no mundo das organizações e no universo da sociedade. Vivemos ao sabor de lideranças postiças do tipo “Sassá Mutema” ou do “Caçador de Marajás”.

O verdadeiro líder sente-se, a um só tempo, insatisfeito e decidido, insuficiente e confiante, aprendiz e mestre, professor e aluno, interdependente e autônomo, aberto e convicto, neto e avô, pai e filho.

É esta dualidade, aparentemente contraditória, que faz dele uma pessoa “igual”, mas “diferente”; sólida, mas sensível; solitária, mas solidária. É a simultaneidade desta dualidade que o torna um visionário realista, alguém que busca ansiosamente aprender com os outros e ensinar também aos outros. Em verdade, é isso que o leva a aprender enquanto ensina e a ensinar enquanto aprende. É por isso que o verdadeiro líder se sente mais forte e confortável num contexto de líderes autênticos e não numa corriola de abúlicos, envolto por um bando de carneiros de balido sonoro e de pelo sedoso.

Qual o paradeiro dos verdadeiros líderes nos dias atuais? Onde estão? Por que sumiram do cotidiano de nossas organizações?

Em verdade, eles estão por perto, a nossa volta, próximos de nós, mas não os identificamos facilmente. São visíveis, iguais a nós, mas perdemos a capacidade de percebê-los. Olhamos, mas não os vemos. Somos piores do que um cego porque não os queremos ver. Muito menos resgatá-los para o exercício das verdadeiras missões para as quais se deveriam destinar.

Torna-se difícil identificá-los na medida em que sua autoridade e autonomia se acham cada vez mais corroídas por forças organizacionais, políticas e sociais, culturais e institucionais sobre as quais eles exercem pouco ou nenhum domínio.

Eis aí a constatação cética ou mesmo pessimista de um problema que se dissemina incontrolavelmente nos ambientes organizacionais da gestão pública ou privada, que ameaça transformar-se em epidemia a minar todo o universo das relações humanas dedicadas à realização do trabalho.

Vazia de lideranças, mas repleta de gerentes e de executivos, é como se a humanidade estivesse pouco a pouco perdendo o controle de seu próprio destino. Temos que sonhar com o renascimento urgente e impostergável de um novo Homero ou de um Heródoto que venham, um dia, a serem capazes de mostrar-nos novamente as características e desígnios, as coerências e circunvoluções dessa humanidade sem direção e sem sentido, porque despojada de um efetivo processo de liderança que compatibilize simultaneamente as características e peculiaridades do líder, dos liderados e da situação vivida.

O processo de liderança é, a um só tempo, função do líder, dos liderados e da situação. O estilo de liderança tem absoluta relevância sobre os resultados da ação organizacional, do trabalho em equipe, da motivação humana, do trabalho decente, dos níveis de compromisso e de autenticidade das relações sociais existentes no cotidiano.

Hoje, o que ouvimos e distinguimos não é a voz uníssona ou o sinal nítido da liderança, mas uma balbúrdia de sons que se contradizem: um violino aqui, um quinteto de metais acolá, o grito da gangue enfurecida nas galerias, a voz rouca das ruas cansada de tanto pleitear.

O que sabemos com certeza é que não podemos esperar o florescimento de uma nova geração para verificarmos o que nos acontece. Temos que tentar interpretar e agir em função do burburinho das vozes que se contrapõem, ousar e reger o coro desarticulado pela anomia, e, portanto, inteiramente desarmônico.

Foi-se o tempo em que o líder podia liderar. E decidir. Hoje, seus sucessores, ainda equivocadamente chamados de líderes, acham-se acorrentados ou manietados por inúmeras limitações: por exigências governamentais crescentemente burocráticas; por órgãos de controle que se superpõem, repetem-se desnecessariamente, tornando-se muitas vezes o custo do controle superior ao risco; por ações de movimentos sociais que se autorreferenciam como paladinos da moralidade; por grupos organizados de consumidores, ambientalistas, protetores dos animais, sindicalistas, feministas, de minorias raciais, sexuais e religiosas e assim por diante que se pretendem donatários da verdade e da redenção dos costumes da sociedade. E lutam por impor as suas questões particularistas ao universo da sociedade e ao mundo das organizações.

As forças externas que invadem e dominam o âmbito de nossas instituições, concomitantemente com o cipoal de exigências burocráticas, o mais das vezes contraditórias, são as causas originárias da perda de autodeterminação de nossas organizações e de suas reais lideranças.

Assim, as organizações são obrigadas a hipertrofiar a sua dependência às estruturas externas de apoio e de prestígio para poderem navegar em mares tão turbulentos. As concessões reiteradas em busca da sobrevivência tolhem, debilitam e desgastam as verdadeiras lideranças.

Esses grupos de pressão são intencionalmente fragmentados. Mantêm-se isolados e frequentemente conflitantes entre si. Não querem ser parte da sociedade, integrar-se à comunidade. Querem apenas ser “eles mesmos”, e somente eles, isolados, tribalizados, parte independente e autônoma do conjunto social ao qual se recusam pertencer. Ao não se assimilarem efetivamente, querem impor os seus valores e opções de minoria à maioria. Veem-se como a totalidade, quando são apenas partes, e assim se comportam. E os líderes que se subordinem ao voluntarismo de seus desejos. É o que fazem amiúde!

Relações institucionais tão fragmentárias, constituídas por grupos e facções, e de múltiplas reivindicações, estão a nos dizer da impossibilidade de assimilação das multidões diversificadas e segmentadas que constituem a sociedade moderna.

Claro, esses grupos agregam indivíduos que estão fartos de serem ignorados, rejeitados, excluídos, subordinados. No entanto, eles não mais protestam simplesmente em passeatas e atos públicos, realizam intermediações e negociações, por canais de articulações e de agregações de interesses. Bem mais do que isso: agora abrem processos na Justiça, valem-se de uma politização crescente do Judiciário, que parece pretender substituir as instancias do Legislativo e do Executivo na cena nacional.

E assim nos tornamos uma sociedade judicializada, litigiosa, na qual indivíduos e grupos sociais organizados recorrem à Justiça para solucionar questões, algumas vezes comezinhas, que antes teriam sido facilmente equacionadas em processos particulares de solução de conflitos.

Sem pretender considerar o mérito de quaisquer dessas causas, o fato dominante é irrefutável: as mãos do administrador estão cada vez mais presas por questões jurídicas reais ou potenciais. Agora é preciso primeiro consultar o advogado antes de tomar decisões, ainda que rotineiras. Hoje não há gestor público que fique imune sem ser formalmente processado em instâncias administrativas e judiciais. Dentro em pouco, não mais haverá também gestores privados que não passarão por tais vicissitudes, como já acontece crescentemente em organizações empresariais particulares de prestação de serviços em geral e de saúde em particular.

Os Tribunais de Justiça e as instâncias administrativas de controle são, evidentemente, necessários ao estado democrático de direito, à proteção dos direitos individuais e à preservação dos interesses públicos em casos, por exemplo, de negligência, fraude ou quebras de contrato.

No entanto, a confusão, a ambiguidade e a complexidade das leis, agravadas pela lentidão processual e por interpretações conflitantes por partes das esferas julgadoras, conduzem à paralisia institucional. Quando não, o mais das vezes, essas instâncias, como usualmente fazem os representantes do Ministério Público, pretendem substituir através das TACs – tais bizarros Termos de Ajuste de Conduta – a direção, o conhecimento e as capacidades das próprias organizações sobre as quais se arvoram determinar os seus destinos e impor a sua vontade à luz de seus critérios jurisdicistas claramente equivocados, inexperientes e leigos.

Muitas de nossas organizações estão claramente fazendo água em decorrência dessa invasão de forças externas alienígenas.

Sabemos muito bem o que a dependência externa causa nas pessoas: incapacidade para controlar o próprio destino.

Cada vez se tornam maiores as necessidades de acenos externos, de sugestões, de recompensas e de punições. As gerências evitam qualquer comportamento e ação para os quais não concorram apoios externos. As birutas passam a se orientar apenas pelos ventos externos que sopram lá fora dos muros das organizações. Não havendo sinais externos de aprovação, elas vegetam, tornam-se catatônicas, imobilizadas pela paúra paralisante “do medo do que vão pensar e dizer” os nossos parceiros e stakeholders.

O mesmo ocorre com as organizações e suas lideranças: sob a submissão de normas coercitivas de caráter legal, burocrático, administrativo e político, mais pela busca desmesurada de obediência ao que seja considerado politicamente correto pela sociedade, elas sofrem dos mesmos efeitos de paralisia catatônica. Tanto faz ser a organização pública ou privada, sejam os controles legítimos ou não, sejam as restrições adequadas ou não, subsiste apenas uma conclusão inescapável: esse cipoal de controles e de constrangimentos (mesmo quando bem intencionados) leva inelutavelmente à construção de organizações lobotomizadas.

O que a sociedade, seus legisladores, políticos, juristas e jornalistas, e principalmente a dita opinião pública, não parecem compreender é que todas essas restrições tratam apenas dos efeitos e não das causas dos pecados praticados e dos cometimentos de ilícitos e de irregularidades. Não tratam dos pecados da omissão. Esses, por certo, são bem mais difíceis de tratar. E, certamente, são eles os dutos principais pelos quais as organizações se esvaem sistematicamente.

É extremamente complexo, na prática, distinguir o erro honesto do intencional ou deliberado. Correr um risco legítimo pode levar um executivo à cadeia. Por outro lado, “jogando no seguro”, só fazendo “o politicamente correto”, não correndo qualquer risco, muito menos ousando, ficando sempre na onda, como uma “Maria vai com as outras”, uma instituição, um líder, um profissional podem evitar o erro e a crítica, e, se continuarem assim na conformidade serão provavelmente promovidos por nunca se exporem, se bem que à custa de renunciar a viver. Exaltamos a ode à omissão, à autoproteção, à exacerbação do líder factoide, que teatraliza uma competência gerencial que efetivamente não mais possui.

Na proporção em que os sistemas político e legal, as instâncias formais de controle e de auditoria, se tornam mais focados nos desvios de cometimento, a ponto de já se perceber uma dramática mudança de precaução do consumidor em relação ao vendedor para exacerbar-se a precaução do vendedor em relação ao consumidor, no dilúvio de uma legislação de proteção ao consumidor cada vez mais exigente, em ações por mau serviço, no movimento de preservação ambiental, nas decisões judiciais de indenização dos prejuízos causados por produtos e serviços inadequados, os fornecedores se desestabilizam diante dos custos da incerteza e dos erros genuínos já em si mesmos muito altos para suportar.

Uma sociedade que exacerba o litígio não só reduz a contribuição e a força das organizações, como talvez lhes acarrete sequelas irrecuperáveis e de difícil superação.

Procuramos nos acomodar à constatação equivocada de que todos os nossos problemas vividos numa sociedade de mercado globalizada, nossas falhas, perdas, inseguranças, becos sem saída, oportunidades perdidas, iniquidades, disfunções e desequilíbrios, nossas incapacidades e incompetências possam ser sempre atribuídos a um “outro alguém”, possam ser imputados ao imponderável, invulnerável, acachapante e invisível “sistema”, que em linguagem de lugar comum, chamamos de neoliberalismo. Tão cômodo e apassivante para as nossas próprias consciências! E tão simplista, para não dizer simplório.

Líderes, uma espécie em extinção, estão espalhados em distintas atividades de consultoria e de mentoring, de coaching e de counseling, de mediação e de arbitragem. Contemporizam, pleiteiam, vão aqui e ali, apartam dissensões, estimulam encontros em meio a tantos desencontros.

Antes de tudo, porém, induzem pessoas por meio de medo ou da venda de ilusões. Acompanham tendências e fazem da inautenticidade a prática do cotidiano. Tornam-se especialistas em dissimular o que pensam, jamais expressam com genuinidade as suas opiniões e convicções. Estão sempre com o radar ligado para agradar aos seus stakeholders. Na arte da guerra, em vez de se dedicarem à estratégia do ataque e do avanço, da luta de conquista, preferem posições conservadoras das trincheiras de autodefesa.

Não estão mais à altura do tamanho das crises que vivemos. Focados no maquiavelismo do sucesso pessoal não titubeiam diante das repercussões inadequadas que suas ações possam ocasionar aos circunstantes, principalmente às organizações a que prestam serviços. E, assim, já não temos mais líderes para empolgarem instituições que efetivamente se defrontem com as crises do nosso tempo.

Adm. Wagner Siqueira
Presidente
CRA-RJ Nº 01-02903-7