É preciso escapar da “ditadura do curto prazo”, que tem monopolizado inteiramente o debate sobre a crise global de 2008 em todo o mundo.
Mais do que tudo, o debate tem que se concentrar efetivamente no que importa, no que fará a diferença, ou seja, na construção de uma nova civilização, num novo modelo que atenue de fato os atuais efeitos da crise e minimize a incidência de outras no futuro. Tudo sem deixar de simultaneamente atentar para a gestão de nosso cotidiano, com vistas a humanizá-lo e a torná-lo mais justo e equitativo, que garanta uma melhoria real da qualidade de nossas vidas comuns ou ordinárias.
O nosso dever é responder à crise, naquilo que ela tem de atípico e de inusitado. Esta não é apenas mais uma crise cíclica do capitalismo, a que os ma istas tanto se referem.
É a crise de um sistema (o capitalismo de consumo e financeiro) e de uma civilização (a pós-industrial), que marca o paroxismo de uma nova era. O nosso dever é estar à frente de nosso tempo, fazer as incursões exploratórias e recolher as informações que nos permitam diagnosticar a atual realidade e vislumbrar a construção de um novo tempo.
Os so tas do século XIX se diziam os filhos de uma primeira revolução industrial, os da máquina a vapor e da industrialização então nascente. Os do liberalismo econômico, por outro lado, diziam-se os herdeiros da eletricidade e do fordismo, ou melhor, da produção industrial de massa. Nós somos os contemporâneos de imensas mudanças conceptuais e estruturais da sociedade de mercado, ainda muito mal compreendidas e exploradas.
É evidente que a “revolução digital” nos sinaliza claramente com a terceira onda da revolução industrial. Ela, por si só, chacoalha os modelos econômicos e as geografias mundiais. Mas não só ela – muito mais ocorre nas profundezas da sociedade de mercado, sem que nos detenhamos atentamente sobre o que se passa diante de nossos olhos apáticos e displicentes.
A espetacular queda de Wall Street em 2008, e o subsequente colapso do setor bancário, não sinalizam o fim do capitalismo, como muitos ainda teimam em afirmar.
Logo após a eclosão da crise, os líderes mundiais participantes do G20 se reuniram apressadamente em Washington para ratificar o compromisso de todos com os dogmas da sociedade de mercado e para, com as ações práticas de seus governos, transformarem o Estado, com o dinheiro dos cidadãos contribuintes, numa gigantesca companhia de seguros dos bancos e das bolsas de valores.
Mais uma vez evidencia-se a natureza cooperativa do Estado em relação ao mercado. O Estado agora desempenha um novo e lamentável papel: passa a ser um mero executor da soberania do mercado, o que agrava mais ainda a radical privatização dos destinos humanos e aprofunda a desregulamentação da indústria e do sistema financeiro.
A segunda metade do século XX experimentou brutais transformações econômicas, sociais e políticas que nos levaram à evolução do capitalismo de produção para o capitalismo de consumo e de crédito. Ou melhor: a transformação de uma sociedade de produtores, em que os lucros provinham sobretudo da exploração do trabalho assalariado através da apropriação da “mais valia”, para o inusitado de uma sociedade de consumidores e de devedores, em que os lucros passam a ser derivados sobretudo da exploração dos desejos de consumo e do endividamento crescente dos clientes ou consumidores.
A fina flor da doutrina empresarial moderna afirma que a função da oferta é criar demanda, ou seja, é preciso induzir e ampliar novas necessidades, que exigem cada vez mais diferentes níveis de satisfação e de aumento do número de novos clientes. E isto vale tanto para produtos industriais quanto financeiros.
Os empréstimos neste contexto são a joia da coroa: a oferta crescente de empréstimos deve criar e ampliar a necessidade de novos empréstimos para dar vazão a um consumo cada vez mais concupiscente.
“Não adie a realização de seu sonho”, “não deixe para amanhã o que pode fazer hoje”, “use o seu cartão de crédito”, ou “desfrute agora e pague depois”, são exemplos de motes publicitários que exponenciam a lógica que agora sustenta a sociedade de mercado: oferta crescente de crédito aos que devem, e os consumidores endividados cada vez mais colonizados pelo consumo e pelas dívidas.
Não pode pagar a sua dívida? Não se preocupe! Os banqueiros não são mais aqueles “agiotas insensíveis” de ontem, ávidos por reaver seu dinheiro em prazos prefixados e não renováveis.
Os bancos modernos desejam lhe oferecer ainda mais crédito para que você possa lhes pagar as velhas dívidas e ainda lhe sobre “algum” para novas compras, pouco importando que sejam coisas supérfluas, mas que vão lhe trazer novas alegrias como mais um feliz proprietário do mais novo gadget lançado no mercado. Claro, desde que você continue pagando as suas prestações mensais, mesmo que novamente com frequência e pontualidade claudicantes.
O gentil gerente personalizado de seu banco sempre estará disponível para nova dilação dos prazos de pagamento. O importante é que você volte a sorrir, com a nova composição de sua dívida e com as novas compras que vai realizar, com o novo empréstimo, em algum ping center no próximo fim de semana. A contrapartida, parece-lhe, decorre de um fato natural: você agora é transformado num devedor colonizado, no novo servo da gleba do século XXI . Bem, “você pode pagar sem problemas e quando não der, volta a fazer nova composição”.
Por certo, o devedor típico é aquele que jamais quita integralmente as suas contas. Buscar novos empréstimos passa a ser a única forma realista de suspensão da execução da dívida. Ingressar nessa condição de servidão à dívida é mais fácil do que nunca na vida das pessoas; e cada vez mais difícil sair dela.
Como as drogas, viver a crédito cria dependência. E assim os empréstimos tóxicos propagam-se pela disseminação de toxicômanos por dívidas da economia de consumo e de crédito. Cuidado: você pode ser a próxima vítima! Pior ainda, talvez já o seja!
Adm. Wagner Siqueira
Presidente
CRA-RJ Nº 01-02903-7