Imagine um aluno devidamente matriculado num Curso de Graduação em Administração numa região qualquer do Brasil. A matriz curricular, pelas normais legais, deve conter uma carga horária mínima de 3.000 horas. O pressuposto é, claro, que esse aluno hipotético, exposto à tamanha carga de conteúdos de aprendizagem, esteja plenamente apto ao exercício das funções do Administrador, devidamente capituladas na lei regulamentadora da profissão, quando da conclusão e diplomação em seu curso.
Bem, será que é isto mesmo que acontece no Brasil, tanto em suas metrópoles como em seus rincões? Não é isto que um olhar atento comprova em muitos ambientes acadêmicos, pelo menos para uma parcela substantiva de formandos e formados! O raciocínio abaixo clareia o ponto nodal da discussão que vou apresentar em seguida:
Distribuição de Carga Horária:
1. Carga horária mínima para Curso de Graduação em Administração…………………3000 horas/aula.
1.1. AAC /Atividades Acadêmicas Complementares de 100 a 300 abatem ………………. 300 horas de aulas.
1.2. Estágio Profissional abate………………300 horas de aulas.
1.3. Redução do tempo de aula de 60min para 50 min abate ………400 horas de aulas.
1.4. Atividades de Campo abatem ……………..200 horas de aulas.
Total de aulas que efetivamente não são lecionadas = 1.200 horas.
Ou seja, 3.000 horas/aula menos 1.200 restam apenas 1.800 horas/aula residuais efetivas em sala de aula. É muito pouco para um escopo de formação profissional tão amplo como aquele preconizado e descrito nas Diretrizes Curriculares Nacionais do CNE/MEC para o curso de Administração. Assim, um Curso de Graduação de 3.000 horas/aula fica reduzido a apenas 1.800 horas/aula. Será suficiente para justificar a plenitude de um Curso de Graduação em Administração?
Coincidentemente, a carga efetiva mínima de aula de um Curso de Graduação em Administração é a mesma exigida para a quase totalidade dos cursos de Tecnólogos, também 1.800 horas/aula.
No entanto, com enormes vantagens para os alunos que optam pela formação em Tecnólogos: não precisam fazer estágio profissional nem se submetem às exigências das AAC/atividades acadêmicas complementares. E mais ainda: dedicam as 1.800 horas de seu curso de Tecnólogo exclusivamente ao foco central escolhido de formação, às suas teorias, às técnicas, aos métodos e aos processos sempre estritamente vinculados à área de conhecimento específico pela qual optaram se especializar.
Em relação ao mercado de trabalho, é preciso reconhecer que os Tecnólogos saem efetivamente melhor preparados para atuar diretamente em suas áreas especificas de formação do que propriamente os Administradores.
Neste aspecto de conhecimento e de ação especializada levam nítida vantagem sobre os alunos que optam pelo Curso de Graduação em Administração, bem mais longo, mas flagrantemente com a mesma carga horária efetiva de aula (1.800 horas/aula), e com uma abrangência de conteúdo e diversidade de focos que impede o aluno de sair especialista em qualquer um deles. Só vai conseguir fazê-lo depois de formado, quer por obra das circunstâncias do acaso em função de ocupações que venha a ter na vida profissional, quer por decisão pessoal de se submeter a cursos de formação especializada de pós-graduação.
Ao procurar um ponto de equilíbrio entre a formação teórica e a especialização, o Curso de Graduação em Administração termina com o graduado mal formado em concepção teórica e tendo apenas notícias do que significam cada uma das diversas áreas de especialização da profissão que decidiu abraçar. Nem aprende a pensar autonomamente a realidade organizacional nem aprende a fazer. E muito menos aprende a fazer fazer, a obter resultados através dos outros, ao desempenho de funções de supervisão e de gerência..
O foco de preocupação do mundo acadêmico, das IES, das entidades dedicadas ao ensino e das associações de classe para resolver o drama da péssima qualificação, em geral, dos egressos dos cursos de graduação em Administração, para o enfrentamento do mercado de trabalho tem sido a tentativa de solução do dilema formação de especialista versus generalista; ora se discute acirradamente se deve haver ou não exame de suficiência; outras tantas vezes o debate se foca na discussão sobre o domínio da profissão; se deve ser ou não fracionado ou compartilhado; ou se deve ou não haver certificação profissional. A questão é sempre a mesma: como mudar o conteúdo das disciplinas ou como efetivamente conceber um projeto pedagógico contemporâneo com o novo milênio?
Por certo, todos estes aspectos e alguns outros são relevantes e muito podem contribuir para uma melhor formação profissional do Administrador. No entanto, a questão primária que enfrentamos é bem mais simples de compreensão e muitíssimo difícil de solução: o aluno de Graduação em Administração precisa de aula, porque aula mesmo ele tem muito pouco, já que a sua carga horária efetiva é absolutamente insuficiente para prepará-lo minimamente para o exercício profissional.
Como nos cursos de Direito e de Contabilidade, que já dispõem das provinhas de exame de suficiência com reprovações em média acima de 80% de seus graduados, o mesmo ocorrerá quando o Curso de Administração trilhar o mesmo destino (veja o meu texto Exames de (In)suficiência, em que traço alguns aspectos relevantes sobre o tema e a omissão e a incompetência do MEC, publicado no site Administradores.com e na Revista Administração do CRA/RJ).
É evidente que há explicações, justificativas e razões didático-pedagógicas ponderáveis para a destinação de tanto tempo às atividades acadêmicas complementares, para a importância do estágio, quando efetivamente utilizado para a formação profissional, e mesmo para as atividades de campo, normalmente dedicadas às pesquisas, aos trabalhos, aos textos, e aos estudos especiais. No entanto, seria muita ingenuidade crer que somente razões educacionais elevadas consubstanciam volume tão expressivo de carga horária de trabalho extracurricular de 1.200 horas em média.
Nem sempre os legítimos ditames pedagógicos conseguem superar as imposições financeiras da “pedagogia da planilha”. A imposição concreta das necessidades de contenção de custos do curso condiciona e determina o processo decisório educativo. É num contexto de restrição financeira que, por exemplo, as aulas de 60 minutos se transformaram em 50 minutos diurnas ou de 40 minutos noturnas para pagar menos o valor da hora/aula aos professores e cobrar dos alunos a “hora cheia”! Maravilhosa engenhosidade financeira produzida pelo sistema mercantilista de ensino que transforma a educação em “negócio” sem qualquer cerimônia, ou melhor, com a parcimônia do poder público que fecha os olhos a essa agressão praticada contra a sociedade que ensandecidamente corre atrás da posse de um diploma para atender às “exigências do mercado”.
Enfim, parte substantiva dessa redução de 1.200 horas acima explicitada é utilizada em atividades “soi disant” educacionais diversas, livres dos custos diretos e massivos do magistério e das demais atividades conexas.
Nesta mesma linha de redução de custos e de maximização de receitas subsistem as conhecidas e persistentes bibliotecas ambulantes, que perambulam pelos campi em função da presença dos avaliadores itinerantes; os coordenadores de curso quase nada fazem de ações didático-pedagógicas por serem impingidos a se concentrarem em atividades rotineiras de secretaria, de atendimento ao público, quando não de verdadeiras babás de alunos (“é preciso encantar o cliente”); a contratação de professores mais baratos, normalmente inexperientes, se torna o critério dominante de formação de quadros do corpo docente; a ouvidoria da IES se torna o “terror” dos professores e do coordenador, pois de lá pode advir o raio fulminante da demissão; o saldão das transferências, em que promoções especiais são oferecidas aos alunos interessados em preços de mensalidades mais baratas, fazendo do mercado de ensino superior no Brasil uma luta concorrencial sem quartel, transformando-o num verdadeiro faroeste educacional, em que as conhecidas avaliações do MEC são preferencialmente utilizadas mais como chamadas mercadológicas de atração do alunado do que como grau de respeitabilidade acadêmica; o esquentamento de diplomas se faz, o mais das vezes, por meio de uma análise superficial da documentação, com abatimento indevido de matérias e de disciplinas, muitas vezes até sem o devido e acurado exame da fidedignidade de origem da papelada necessária à transferência (“o importante é fisgar o aluno”); os badalados projetos pedagógicos são muitas vezes cópias de modelos bem sucedidos alhures, em que o critério de “redução sociológica de adaptação à realidade” não passa de digitação do tipo ctrlc e ctrlv; o quadro docente, em que professores barrigas de aluguel emprestam os seus nomes, mas jamais dão aula nem sequer sabem onde ficam as unidades educacionais em que são arrolados, etc…
Neste contexto didático-pedagógico, em que o MEC efetivamente abdica do desempenho de papéis e funções objetivas de controle de qualidade dos resultados dos cursos de formação profissional para privilegiar um foco de auditoria nitidamente burocrática do tipo “pra inglês ver”, os alunos pagam não só o preço financeiro das mensalidades, mas também a elevada carga da iniqüidade social do desemprego, da precarização da ocupação profissional, da baixa empregabilidade, do aviltamento salarial, da frustração e da decepção existenciais, da baixa mobilidade social, que deveria ser produzida pela ascensão a níveis educacionais superiores.
Todo esse contexto de iniqüidades resulta na formação massiva de legiões de profissionais diplomados desqualificados, portanto, incapacitados para o exercício profissional.
Questões como as ora suscitadas não podem ficar restritas a colóquios reservados de especialistas, como se não existissem de fato. É preciso aterrissar no país real, discutir os verdadeiros obstáculos que atravancam uma formação de qualidade do profissional de Administração.
Adm. Wagner Siqueira
Presidente
CRA-RJ Nº 01-02903-7