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O Jornal Folha de São Paulo, em chamada de primeira página,   na edição do dia 30/01/14,   informa que “Juiz absolve traficante confesso por considerar maconha recreativa”. Em subtítulo, informa ainda: “Réu levava droga dentro do estômago para presídio da Papuda, em Brasília”. A apreciação moral das normas legais se torna o cotidiano das decisões judiciais em nosso País, como mais este episódio está a demonstrar.

Por exemplo, voltando um pouco no tempo, o carnaval do ano de 2008 ensejou uma oportunidade especial de vislumbrar os riscos das trevas do totalitarismo que se abatem sobre uma sociedade quando o Estado envereda pelo caminho da apreciação moral das regras políticas e jurídicas.

Refiro-me aos episódios da violação da liberdade de expressão em que a Justiça proibiu no Rio de Janeiro a Escola de Samba Unidos do Viradouro de desfilar com um carro alegórico sobre o holocausto da II Guerra Mundial, e de a Prefeitura de Recife ter sido acusada de haver desrespeitado a lei do aborto ao distribuir a chamada “pílula do dia seguinte” durante o tríduo momesco.

Ao Estado não é dado o poder legítimo da apreciação moral na aplicação da política e do direito. Foi a moral nazista que viabilizou a barbárie na aplicação das normas e regras políticas e jurídicas alemães.

A interpretação moral da legislação também permitiu a apartheid sul-africana, a discriminação racial nos Estados Unidos e o apedrejamento das mulheres iranianas até a morte por pretensos crimes de adultério.

A fundamentação institucional-legal do nosso País não dava qualquer sustentação objetiva à interpretação de maconha recreativa de um  transporte de droga no estômago para um presídio por  traficante como réu confesso  nem à condenação da “pílula do dia seguinte” na Prefeitura do Recife  nem à proibição do carro alegórico da Viradouro.

Nesses episódios, a subjetividade essencialmente moral – não seria moralista? — dos juízes absolveu e liberou o tráfico, condenou a pílula e proibiu o carro no desfile, em claro desrespeito aos direitos fundamentais do cidadão num estado laico como o brasileiro.

Há que se fazer a distinção entre ordem institucional-legal (jurídica e política) e a ordem moral. E, assim, nem a moral pode fazer às vezes da política e do jurídico nem a política e o jurídico podem substituir a moral. Nem mesmo quando a moral é modernamente batizada de direitos humanos ou de humanitarismo, o que lhe reveste distorcidamente, ainda mais, de conotações políticas e jurisdicistas.

É a ordem jurídico-política, ou seja, a lei e o Estado, a organização institucional-legal, que asseguram aos indivíduos os seus direitos e se lhes atribuem responsabilidades e obrigações.

É o legislador quem nos diz se devemos ou temos o direito ou não de fazer a clonagem reprodutiva, as manipulações genéticas, o uso das células-tronco e, no caso em tela, distribuir a “pílula do dia seguinte” e garantir a liberdade de expressão num carro alegórico de escola de samba, liberar o uso da maconha.

É o legislador que fixa essas prerrogativas, que dá concretude à vontade do povo soberano numa democracia, através da mediação da representação política no parlamento.

A ordem institucional é estruturada pela oposição entre o legal e o ilegal. Há o que a lei autoriza – legal – e o que a lei proíbe – ilegal.

Politicamente, há os que têm competência para fazer a lei, isto é, detêm a maioria da representação, e os que não têm essa competência, ou seja, a oposição. É assim a ordem democrática e republicana.

Uma lei não existe para dizer o bem e o mal, mas apenas o permitido e o proibido. Nas sociedades democráticas não é mais o sagrado que reina; é a livre escolha do povo no exercício de suas liberdades. A base do Direito não é a religião. São as leis e as instituições democráticas de um país. Só os regimes teocráticos fazem dos seus credos a determinante das leis e da construção de suas instituições.

A realidade democrática constrói dois reinos distintos, duas ordens diferentes: o verdadeiro e o bem não se votam, já que a democracia não faz as vezes da moral nem a moral faz as vezes da democracia.

A um juiz não é dado o direito de sobrepor o seu foro íntimo, os seus gostos e preferências religiosas ou não, as suas acepções morais como indivíduo à interpretação objetiva da lei produzida pelo coletivo da representação política reunida no parlamento, que consagra o modelo institucional-legal prevalecente na sociedade.

Se assim o fizer, mais do que a disfuncionalidade  da politização do Poder Judiciário, ele estará suprimindo a laicidade do Estado brasileiro, estará contaminando pela subjetividade de suas opções morais o caráter da interpretação e da aplicação objetiva da lei.

A moral é o conjunto dos nossos deveres, das obrigações ou das proibições que impomos a nós mesmos, independentemente de qualquer recompensa ou sanção esperada, e até de qualquer esperança. É o conjunto do que vale ou se impõe, incondicionalmente, para uma consciência.

Ser moral é cuidar do seu dever. Ser moralista ou moralizador é querer cuidar do dever dos outros. A moral nunca é para o outro, para o vizinho, para o próximo. É para si.

E, portanto, a um juiz não é deferido o poder de impor a sua moral sobre quem quer que seja ao fazer a interpretação da legislação aplicada.

O elo mais fraco hoje na sociedade brasileira não é a crise dos valores morais produzida pela corrupção desenfreada, como muitos acreditam, mas a crise das instituições políticas que também se contaminam pela interpretação moralista dos agentes públicos, que se arvoram em aristocratas da virtude, em donatários do que julgam deva ser o bem comum.

A nossa sociedade vai mal quando o moralismo que fundamenta as decisões judiciais desconhece os limites interpostos a cada juiz pelas regras objetivas do estado democrático de direito. Este é o ovo da serpente do totalitarismo. Isto nos causa arrepio de medo, como, aliás, tão propriamente propugnava o enredo carnavalesco violado pela decisão judicial pretensamente moralizadora.

Adm. Wagner Siqueira
Presidente
CRA-RJ Nº 01-02903-7

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